Carlos Eduardo Toniolo Silva
Um dos melhores parâmetros para ser reconhecer a eficácia de um sistema será observar a confiança que ele inspira naqueles que o utilizam. Iremos ilustrar essa realidade com uma pequena crônica histórica. O episódio que se toma como preâmbulo a este estudo é um dos clássicos da literatura que envolve o mundo jurídico: a história do ‘moleiro de Sanssouci’. É contada em verso por François Andrieux,[1] e no Brasil Lenio Streck se refere a ela várias vezes em palestras.
Frederico “o Grande”, rei da Prússia no século XVIII, era um exemplo destas figuras enigmáticas que foram os “déspotas esclarecidos”. Admirador da música e poesia, amigo de Voltaire e de outros filósofos da época, era também exímio estrategista militar e excelente administrador, que trouxe a seu reino um período de poder político e pujança econômica. Em certo período de paz, o soberano decidiu construir um palácio de verão em Potsdam, próximo a Berlim. Desenhado pelo arquiteto Knobelsdorff, o projeto resultou numa magnífica obra, que para muitos rivalizava com Versailles. Como lugar de descanso, afastado da capital e da corte, o lugar recebeu o apropriado nome de ‘Sanssouci’, ou seja, ‘sem-preocupações’.
Alguns anos depois, porém, o rei resolveu expandir as áreas e jardins em torno do palácio. Esclarecido que era, ordenou que comprassem a preço justo os terrenos adjacentes que pretendia. Foi quando soube que na encosta de uma colina próxima, o dono de um velho moinho se recusava de qualquer modo a vendê-lo, mesmo que os emissários reais lhe oferecessem soma superior ao que valia.
Incomodado pela demora, o soberano ordenou que trouxessem o teimoso moleiro à sua presença. Este compareceu no seu costumeiro traje humilde, não parecendo intimidado pela pompa do palácio real. Frederico ofereceu-lhe vultosa soma, para encerrar de uma vez querela para ele tão simples. Mais uma vez o moleiro recusou lembrando que naquela casa ‘seu pai havia morrido, e seus filhos nascido’, assim que nunca a iria vender.
Contrariado, Frederico lembrou ao pobre moleiro que quem lhe falava era o rei da Prússia, e que era por mera bondade que lhe oferecia dinheiro, pois com um simples gesto poderia ordenar a expropriação do moinho, sem dar satisfação a mais ninguém. E foi nesse momento que o moleiro teria dito a célebre frase:
“Sim, majestade. Poderia… Mas ainda há juízes em Berlim!”
O soberano ficou pasmo com a resposta e com a ousadia. Sim, entre tantas de suas obras estava a reforma do sistema jurídico do reino, com o célebre Código Prussiano (Allgemeines Landrechtfür die Preußischen Staaten), invocado pelo simples moleiro em sua defesa. O rei deu-se conta de que mais do que ganhar guerras ou construir palácios, havia consolidado no reino tal respeito ao poder judiciário, que mesmo um pobre moleiro não sentia medo de ir às cortes, ainda que em confronto com o próprio rei. Do palácio o moleiro saiu sossegado – ‘sans-soussis!’ – e Frederico manteve o moinho em paz até o fim de seus dias.
O episódio narrado como introdução não é mera recordação histórica. Ele expõe questões que já eram fundamentais naquela época, continuam sendo hoje, e certamente o serão amanhã: a limitação do poder do estado sobre o indivíduo, a correta aplicação da justiça pelo juiz, a confiança que o povo dever ter em seus juízes.
Confiabilidade, Segurança Jurídica e Estado Democrático de Direito
Este caso revela um dos maiores predicados que uma instituição – no caso, o judiciário – pode conquistar junto à sociedade: a confiabilidade. De fato, quando um cidadão, diante de uma tribuna, se sente seguro a ponto de não temer entrar em litígio contra os poderosos, sejam estes pessoas, grandes empresas ou o próprio Estado, então o que chamamos de ‘Estado Democrático de Direito’ estará consolidado, e o simbolismo iconográfico de ‘Themis vendada’ estará justificado.
No campo jurídico, a confiabilidade anteriormente referida resulta de confiança somada à estabilidade, como refere Aléssia Chevitarese: “O veredicto de uma decisão, em matéria de ‘segurança’ deve estabelecer critérios de confiança e estabilidade para a sociedade.” [2]
Com respeito à confiança assinalamos o fato de que a sociedade atual cada vez mais busca no judiciário a solução de seus problemas e anseios. É fenômeno que se acentuou na segunda metade do séc. XX, e no Brasil especialmente nas últimas décadas. Muitos autores têm percebido essa tendência: Oscar Vilhena utilizou a expressão “Supremocracia”, ao descrever a expansão da autoridade do Supremo Tribunal Federal – STF, o qual tem dado a última palavra em questões não apenas judiciais, mas também políticas e morais, tomando muitas vezes espaços talvez mais apropriados ao legislativo e ao executivo. De fato, como adverte Tercio Sampaio “a sensação é que há uma espécie de crise do paradigma do direito legislado e codificado”. [3]
Como ressalta Chevitarese, “o direito é hoje mais que expressão de ordem na sociedade” [4], a ponto de apresentar-se a idéia do “judiciário como superego da sociedade”, ou no dizer de Maus: “uma representação da Justiça por parte da população que ganha contornos de veneração”. [5] Convém ressaltar que essa confiança que o cidadão tem depositado no judiciário lhe traz uma imensa responsabilidade, que a este deve corresponder com a qualidade de sua prestação jurisdicional.
Com relação a previsibilidade, esta se insere no contexto da Segurança Jurídica. Um sistema jurídico é seguro quando alcança estabilidade e continuidade da ordem jurídica, e assim há para o cidadão uma previsibilidade das conseqüências jurídicas de suas condutas. Na expressão de Ramírez, para o cidadão a previsibilidade jurídica “é uma manifestação eloqüente da importância do passado para, a partir do presente, prever o futuro”.[6]
Essa previsibilidade é também indispensável para constituição do Estado de Direito.[7] Mais ainda, autores como MacCormick apontam a segurança jurídica como um dos maiores valores assegurados pelo Estado de Direito:
Entre os valores que o Estado de Direito assegura, nenhum é mais importante que a certeza jurídica, exceto talvez pelos princípios que a acompanham, a saber: a segurança de expectativas jurídica e a garantia do cidadão contra interferências arbitrárias por parte do governo e de seus agentes”. [8]
Eis a razão porque esta segurança jurídica é tão importante para constituição do Estado de Direito: além dela pautar a conduta dos cidadãos entre si, irá garantir a defesa dos indivíduos contra o próprio estado. O mesmo autor reitera o conceito anterior, pontuando a ‘razoável certeza’ que a estabilidade do sistema judiciário produz entre as pessoas entre si, e entre estas e o Estado.
No que tange ao Estado de Direito, as pessoas podem ter, antecipadamente, razoável certeza a respeito das regras e padrões segundo as quais sua conduta será julgada […] de suas expectativas acerca da conduta das demais pessoas. Elas podem desafiar ações governamentais que afetem seus interesses exigindo bases jurídicas claras para a ação oficial, ou pleiteando a nulidade de atos praticados em desacordo como o Direito, por meio do controle desses atos por um judiciário independente. [9]
Na verdade, este autor trata a segurança jurídica hora como princípio, ora com direito fundamental. Campos observa que isso só reforça a tese de que “ela representa muito mais do que esses dois institutos”, e isso “traduz a transcendência da segurança jurídica em relação àquilo que a constitui – a regra, o princípio, o valor, o direito fundamental, dentre outros. Nessa perspectiva, a segurança jurídica não é só um direito, mas também um dever.”[10]
Assim, tendo como pressuposto a importância desta segurança jurídica dentro do Estado de Direito, facilmente se compreende a responsabilidade do Estado em garanti-la, e particularmente do Judiciário em praticá-la. Com efeito, cada sentença dada por um magistrado afeta em algo essa segurança, seja para consolidá-la, ou, sentido contrário, para comprometê-la.
Aliás, quando se emprega a expressão “Estado de Direito”, sabe-se de antemão que é um conceito complexo, e não livre de equívocos. Neste artigo, acolhemos o conceito de que se trata de uma síntese entre a ordem pública e as liberdades individuais; conforme aponta Simone Goyard-Fabre:
Assim estaria realizada […] a síntese da ordem pública e das liberdades individuais, simultaneamente, manifestar-se-ia, pela conciliação do direito (cuja positividade é a matriz da ordem) com os direitos (cujo reconhecimento é a glória do individualismo humanista), a aliança entre o cidadão e o indivíduo, isto é, o acordo das áreas do público e do privado.
Segundo esta autora, o Estado de direito não será apenas uma modalidade de regime político, mas uma modalidade constitucional na qual se podem articular a generalidade da regra jurídica e a singularidade da existência individual.[11]
Por fim, convém precisar que previsibilidade, no âmbito jurídico, não se confunde com imutabilidade, atributo daquilo que não admite mudanças. Como leciona a ministra Cármen Lúcia: “A segurança não é imutabilidade, pois esta é própria da morte. A vida, esta, rege-se pelo movimento, ela cria, é movível. O que se busca é a segurança do movimento”.[12]
É, pois, esta “segurança do movimento” que o sistema jurídico deve buscar. Desta maneira, à medida que neste sistema forem identificadas deficiências ou lacunas técnicas que possam comprometê-lo, essas devem ser sanadas, no interesse do bem comum da sociedade.
Lacuna para garantia da segurança jurídica: a inobservância aos precedentes
Contorno teórico do termo ‘lacuna’
Quando neste artigo utilizamos o termo “lacuna”, convém precisar em que sentido ele é empregado. Kelsen sustentava que, tomado o sentido lógico, no campo normativo não há propriamente lacunas jurídicas, pois quando “a ordem jurídica não estatui qualquer dever de um indivíduo de realizar determinada conduta, permite esta conduta.”[13] O pensador alemão sustentava que, na verdade, o que as pessoas geralmente chamam de lacuna seria mais propriamente quando “a ausência de uma norma é considerada pelo órgão aplicador do direito como indesejável do ponto de vista da política jurídica.” Ou seja, nesta acepção, a dita ‘lacuna’ seria mais uma questão política do que jurídica.
Além disso, Kelsen admite o que chama de ‘lacuna técnica’: “Uma lacuna técnica apresenta-se quando o legislador omite normatizar algo que deveria ter normatizado para que de todo em todo fosse tecnicamente possível aplicar a lei.”[14] Sob este prisma, o termo lacuna é entendido não com a ausência de uma lei que seria desejável sob o ponto de vista político, mas como uma falha na própria técnica do sistema jurídico, a qual pode comprometer a efetividade deste mesmo sistema. É nesta segunda acepção que o termo ‘lacuna’ é empregado neste artigo.
É também nesse sentido que Cappelletti aponta os obstáculos à efetivação da justiça ideal, na qual “a efetividade perfeita, no contexto substantivo, poderia ser expressa como a completa igualdade de armas – a garantia de que a condução final depende apenas dos méritos jurídicos das partes antagônicas”.[15] Os obstáculos por ele mencionados em sua obra seriam, no segundo sentido de Kelsen, ‘lacunas técnicas’ a serem superadas no aperfeiçoamento de determinado sistema jurídico.
Em face dos conceitos abordados, pode-se perguntar: sendo a segurança jurídica tão importante para o Estado Democrático de Direito, estará devidamente resguardada em nosso sistema jurídico, ou haverá lacunas técnicas para sua efetividade?
Precedentes: a efetividade da segurança jurídica na interpretação da norma
Não é raro pensar que a segurança jurídica se resume aos limites impostos pela Constituição à retroatividade da lei. A Magna Carta estabelece no seu art. 5º, inciso XXXVI que: “A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.[16] Ou seja, que posta norma nova, esta não terá efeitos sobre as relações já estabelecidas, mas tão somente sobre as futuras. Em igual sentido define o art. 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB (Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942, alterado pela Lei nº 12.376/2010).
Art. 6º – A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, direito adquirido e a coisa julgada:
1º – Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou.
2º – Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo prefixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem.
3º – Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso.
Porém, percebe-se que se trata de conceito abertos, assim “verifica-se que não se trata de definições fechadas, de rigor metodológico, mas de elementos identificadores da segurança jurídica”. [17] Será o juiz, “a quem cabe dizer da característica fática na norma constitucional”, que irá acomodar a aplicação da norma constitucional. [18]
Deste modo, a efetividade da segurança jurídica irá decorrer mais da interpretação e aplicação da norma que do mero princípio da irretroatividade, como bem registra Alencar:
A questão da segurança jurídica não pode se desligar da hermenêutica. Não é uma noção que pode ser definida de maneira cômoda, para simplificar o trabalho do jurista – na linha de se precaver contra a responsabilidade que poderia defluir da aplicação do direito -, porém, paradoxalmente, necessita de sério esforço hermenêutico. Segurança jurídica está atrelada à fundamentação da decisão judicial de acordo com o caso concreto.[19]
É neste campo da interpretação que reside uma das maiores lacunas de nosso sistema, já apontada por alguns autores, e para a qual será dirigido este estudo: a falta de respeito aos precedentes jurídicos em nosso sistema judicial. Esta falta de vinculação dá um vasto campo de discricionariedade ao magistrado ao interpretar a lei, o que compromete a segurança jurídica do direito como um sistema íntegro. Nosso sistema deveria garantir um respeito aos precedentes, como propõe Marinoni: “Uma decisão, na medida em que deriva de fonte dotada de autoridade e interfere na vida dos outros, constitui precedente que deve ser respeitado por quem o produzir e por quem está obrigado a decidir em caso similar”.[20]
E é nesse que ponto há uma limitação do sistema. Em se tratando de casos iguais – ou seja, que tratem de mesma questão de fato e direito – ao decidir, um magistrado não precisa respeitar decisões de tribunais superiores, e nem mesmo de outros juízes pares seus. Mais ainda: não está nem sequer vinculado às suas próprias decisões, podendo dar a um caso sentença diametralmente oposta a que tenha dado a um caso semelhante dias atrás.
Esta é a razão de que muitos, como Medina, consideram o resultado das decisões judiciais uma “verdadeira loteria”[21], onde o jurisdicionado estará mais preocupado no nome do juiz de sua causa, do que na forma da lei que o resguarda ou atinge. É o que já lamentava Dworkin: “as pessoas frequentemente se vêem na eminência de ganhar ou perder muito mais em decorrência de um aceno de cabeça do juiz do que qualquer norma geral que provenha do legislativo.”[22]
Nos tópicos a seguir, veremos algumas características que se esperariam de um sistema de prestação jurisdicional que efetivamente garantisse a segurança jurídica, e em que medidas tais características são – ou não – atendidas no sistema jurídico brasileiro.
Dos atributos da Prestação Jurisdicional no âmbito da Segurança Jurídica
A prestação jurisdicional se concretiza na sentença prolatada pelo juiz – seja terminativa ou definitiva.[23] Será tarefa quase impossível condensar a vasta bibliografia a respeito do que seja uma boa sentença, e quais seus atributos ideais. Cada autor apontará tópicos diferentes, o que causa embaraço de escolha.
No entanto, dentro dos limites deste artigo, no âmbito da segurança jurídica, optamos por Marinoni, que ressalta as características da Previsibilidade, da Igualdade e da Coerência.[24]
Prestação Jurisdicional e Previsibilidade
Como vimos, dentro do Estado Democrático de Direito, o cidadão poderá prever as consequências de seus atos, limitados e garantidos pelas normas vigentes. É o que se chama de previsibilidade, e é uma das facetas da segurança jurídica. E é nesta previsibilidade que se funda a confiança que o jurisdicionado terá no judiciário.
Assim, para que exista segurança jurídica, há que se proteger a confiança do jurisdicionado, no sentido da previsibilidade, como escreve Canotilho: “segurança jurídica e confiança andam estreitamente associadas, a ponto de alguns autores considerarem o princípio da proteção da confiança com um subprincípio ou uma dimensão específica da segurança jurídica.” [25]
Esta proteção cabe ao Estado, como refere Sarlet: “um patamar mínimo de segurança (jurídica) estará apenas assegurado quando o Direito assegurar também a proteção da confiança do indivíduo (e do corpo social com ou todo) na própria ordem jurídica e de modo especial na ordem constitucional vigente”.[26]
Ora, como afirma Corsale, tal segurança se afirma “não tanto pela fórmula escrita no código, a norma abstrata, mas a dita norma individual, a concretização da regra no caso específico”.[27] Pelo que a previsibilidade não se restringe ao mero conhecimento da lei e a uniformidade de interpretação, pois estas “de nada adiantariam caso o jurisdicionado não pudesse contar com decisões previsíveis”. [28]
Esta é a razão pela qual a interpretação deve tender a uma linha harmônica e coerente, e assim aproximar-se do ideal de previsibilidade. Isso não implica, obviamente, na eliminação de qualquer dúvida interpretativa, mas sim em minimizar tanto quanto possível divergências de interpretação.
Assim melhor se compreende a queixa de que “o sistema jurídico brasileiro, em tal dimensão, afigura-se completamente privado de efetividade, pois indubitavelmente não é capaz de permitir previsões e qualificações jurídicas unívocas”. Como exemplo, causa impressão o fato de que a missão constitucional dada ao STJ como garantidor da unidade do direito federal é “completamente desconsiderada na prática jurisprudencial brasileira”. Mais ainda, “as decisões do STJ não são respeitadas nem no âmbito interno da Corte”.[29]
Assim, sumariamente, vemos como a desconsideração aos precedentes traz como efeito prático a imprevisibilidade das decisões judiciais. Com isso, fica comprometida a segurança jurídica, elemento basilar do Estado Democrático de direito. Aqui fica identificada uma lacuna técnica de nosso sistema jurídico.
Igualdade nas decisões judiciais – vedação à arbitrariedade
Outro elemento da sentença judicial, sempre no âmbito da segurança jurídica, consiste na igualdade perante a lei. É conceito ao qual nosso constituinte primário procurou dar relevo, e que permeia a construção e aplicação de nosso sistema jurídico. Não será excessivo repetir mais uma vez o caput do art. 5º “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”.[30] O tratamento desigual só será admitido para realização concreta da própria igualdade (tratar os desiguais na medida de sua desigualdade).
O primeiro campo onde se preserva esse igualitarismo será no processo civil. Nesse sentido, a doutrina jurídica brasileira procurou concretizar este princípio, sobretudo nos aspectos internos da marcha processual. Nesse campo, a igualdade é normalmente associada ao princípio do contraditório, estabelecendo a dita ‘paridade de armas’ dada aos litigantes, que devem ter as mesmas possibilidades de influir na livre convicção do juiz. Como complementação, o sistema nacional também procurou minorar as desigualdades processuais que atingem os desprovidos de meios econômicos, por meio das Defensorias públicas, e também pela instituição dos procedimentos dos Juizados Especiais.
No entanto, um processo justo é o suficiente para garantir uma sentença justa? Faz sentido a frase atribuída a Salvador Allende, “não basta que todos sejam iguais perante a lei, é necessário que a lei seja igual para todos”. Ora, como ressalta Marinoni, “o Judiciário deixa de observar o princípio da igualdade no momento mais importante da sua atuação, exatamente quando tem de realizar o principal papel que lhe foi imposto”[31], ou seja, ao proferir a sentença que porá fim ao litígio. Aceitara tese de que o procedimento é mais importante que o conteúdo da decisão não é hipótese válida, como aponta Taruffo:
Isso implica na renúncia em avaliar se uma decisão é ou não justa pelo seu conteúdo, ou pelos efeitos que ela produz, e assim o observador se refere apenas à consideração das formas em que ocorreu o processo que levou a essa decisão.[32]
Afinal, o fim último daquele que busca a prestação jurisdicional é uma decisão racional, justa e igualitária. Igualitária no sentido de que uma pessoa espera ter a mesma sentença que qualquer outra pessoa teria, em igual situação de fato e direito. Mas não é o que acontece. O desrespeito aos precedentes – especialmente quando um juiz contraria suas próprias decisões anteriores – gera um problema de legitimidade:
A jurisdição não encontra legitimidade ao oferecer decisões diversas para casos iguais ou ao gerar decisão distinta da que foi formada no tribunal competente para a definição do sentido e do significado das normas constitucionais e dos direitos fundamentais.[33] ”
Essa prática leva o cidadão que está diante da tribuna à incerteza se terá ou não tratamento igual a outrem. Com efeito, essa possibilidade de desigualdade transfere – em boa medida – a sentença judicial ao campo da arbitrariedade do magistrado.
A respeito dos efeitos negativos da arbitrariedade, tomada como oposto da igualdade, aponta Ramírez que esta converte o cidadão em “um súdito incapaz de organizar sua vida, sempre dependendo de observar o rosto de seus governantes, para averiguar seus bons ou maus humores, e só assim decidir em consequência”.[34]
É assim possível que, eventualmente, ocorram arbitrariedades. Em todo caso, não será raro que casos iguais tenham sentenças diferentes, não só em um mesmo tribunal, mas inclusive prolatadas por um mesmo juiz. Com visto, as decisões de um juiz não estão vinculadas às de cortes superiores, nem mesmo as dele próprio. Assim se constata como nosso sistema, ainda que formalmente o proponha, ainda não possui mecanismos eficazes para garantir uma igualdade satisfatória naquilo que é o objetivo final da prestação jurisdicional, ou seja, uma sentença justa e igualitária.
Prestação Jurisdicional e Coerência – Observância Vertical
O nosso sistema prevê o chamado “duplo grau de jurisdição”[35], no qual se exige – em regra – a dupla análise do mérito. Muitos avaliam que dentro dessa regra, é diminuto o poder do juiz de primeiro grau, pois na verdade será no tribunal que o litígio será resolvido de fato. Esse pensamento é verdadeiro só em parte, pois sempre há a possibilidade que a parte vencida se conformar com sentença e não recorrer, fazendo desnecessária a ação do tribunal e ocorrendo o trânsito em julgado já na primeira instância.
No entanto, só é possível que isso aconteça caso as partes saibam antecipadamente a decisão a ser proferida no tribunal. Ora, isso só ocorre “quando houver um mínimo de estabilidade na interpretação do direito, a gerar previsibilidade aos litigantes, que assim poderão decidir pela oportunidade de interposição de recursos”[36]. Assim, a coerência lógica do sistema de duplo grau de jurisdição (juiz – tribunal), exige a existência de uma jurisprudência estável, e sobretudo, que esta seja respeitada pelos juízes “inferiores”.
Desta maneira, se entende que qualquer sistema estruturado em níveis diversos deve considerar a hierarquia, ainda que tomada em termo apenas lógico. Ora os Tribunais Superiores – seja na justiça comum ou especializada – estão no cume do nosso sistema judiciário, e a eles incumbe a função e responsabilidade de dar a dita ‘correta’ interpretação da lei Federal e da Constituição. As decisões destas Cortes devem – a princípio – ser respeitadas pelos tribunais ordinários. Porém, não é raro encontrar na doutrina e entre operadores do direito o conceito de que por não haver hierarquia entre os juízes, estes não deveriam qualquer forma de respeito às decisões dos tribunais superiores a eles. Tomando o exemplo citado por Estefânia Barbosa, temos um julgado de direito previdenciário (desaposentação), no qual a juíza da vara decide:
O Superior Tribunal de Justiça tem entendimento segundo o qual a renúncia opera efeitos ex nunc. A devolução de proventos não é devida, visto que os valores recebidos tinham natureza alimentar (…). Entretanto, este juízo entende de maneira diversa. A exigência de devolução não encontra obstáculo no fato de as prestações recebidas terem caráter alimentar.[37]
A razão desse engano reside em confundir o princípio de autonomia e independência com inexistência de qualquer respeito às decisões superiores. Por suposto, quando se argumenta em favor da hierarquia, não se está negando a independência e autonomia dos juízes. Trata-se antes de “evidenciar que, por uma razão lógica derivada da função e do lugar de inserção conferidos aos tribunais pela Constituição Federal, a hierarquia justifica uma inquestionável necessidade de respeito às decisões judiciais”. [38]
Assim, para que haja segurança jurídica, não basta que exista coerência no sistema normativo. É também preciso que exista coerência e respeito à hierarquia lógica que a própria Constituição estabelece, como advertiu Calmon de Passos ao afirmar que a força vinculante dos tribunais superiores existe “independentemente de previsão legal expressa e vinculam como decorrência necessária do próprio sistema e do seu modo constitucional de operar” [39]. A necessidade desse respeito em favor da coerência é ainda assinalada por MacCormick:
Num estado moderno, com muitos juízes e muitas cortes e uma hierarquia estruturada de recursos, as mesmas regras e soluções devem orientar a decisão independentemente do juiz do caso. Fidelidade ao Estado de Direito requer que se evite qualquer variação frívola no padrão decisório de um juiz ou corte para outro[40]
Desta maneira, pode-se observar como a falta de coerência e descaso com a hierarquia lógica, correntes em nosso sistema jurídico, podem comprometer a Segurança Jurídica.
Como ressalva necessária, observamos que o termo “coerência” pode ser tomado em dois pontos de vista, como disserta Freitas Filho: o interno e a externo. A perspectiva interna segue a “tradição interpretativista, aí entendidos autores como Robert Alexy, Ronald Dworkin e Neil MacCormick”, entre outros. Já a perspectiva externa está mais ligada a “um recurso discursivo de legitimação decisória”, ou seja, “relativo às condições de inteligibilidade da linguagem”, dentro de um contexto de crítica à utilização política da doutrina jurídica, no sentido de que “o direito não seria criado para limitar o poder daqueles mesmos que o criaram”.[41]
[1] ANDRIEUX, François-Guillaume-Jean-Stanislas. Le Meunier de Sans-Souci. Texto original em francês disponibilizado pela Bibliothéque Nacionale de France: Disponível em: < http://goo.gl/LP32QH >. Acesso em: 09 jul. 2015.
[2] CHEVITARESE, Aléssia Barroso Lima Brito Campos. O Direito em seu Laboratório Jurisdicional: Os Sentidos de Verdade e Segurança Jurídica. Disponível em <http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=4883eb035654015a>. Acesso em: 8 ago. 2014.
[3] FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Julgar ou gerenciar? Folha de São Paulo, São Paulo, 29 set. 2014, caderno Opinião.
[4] CHEVITARESE, Aléssia Barroso Lima Brito Campos. O Direito em seu Laboratório Jurisdicional: Os Sentidos de Verdade e Segurança Jurídica. Disponível em <http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=4883eb035654015a>. Acesso em: 8 ago. 2014
[5] MAUS, Ingeborg. O Judiciário como Superego da sociedade. Revista Novos Estudos: CEBRAP. nº 58, Nov. 2000. p. 183-202.
[6] RAMÍREZ, Federico Arcos. La Seguridad Jurídica – una teoría formal. Universidad Carlos III de Madrid. Madrid: Dykinson S.L., 2000. p. 38.
[7] MARINONI, L. Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 105
[8] MAcCORMICK, Neil. Retórica e o Estado de Direito. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. p. 22
[9] MAcCORMICK, Neil. Retórica e o Estado de Direito. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. p. 22
[10] CAMPOS, Marcelo Barroso Lima Brito de. Os Direitos Previdenciários Expectados dos Servidores Públicos Titulares de Cargos Efetivos no Paradigma do Estado Democrático de Direito Brasileiro. Disponível em <http://www.biblioteca.pucminas.br/teses/Direito_CamposMBLB_1.pdf>. Acesso em: 9 jul. 2014.
[11] GOYARD-FABRE, Simone. Os Princípios Filosóficos do Direito Político Moderno. M. Fontes. São Paulo, 2002. p. 319
[12] CAMPOS, Marcelo Barroso Lima Brito de. Direitos previdenciários expectados: a segurança na relação jurídica previdenciária dos servidores públicos. Curitiba: Juruá, 2012.
[13] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo, M. Fontes, 2004. p. 273-274.
[14] KELSEN op.cit. p. 276.
[15] CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1988. p. 6.
[16] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 5º XXXVI. Disponível em: < www.planalto.gov.br > Acesso em: 10 mar. 2014.
[17] CHEVITARESE, Aléssia Barroso Lima Brito Campos. O Direito em seu Laboratório Jurisdicional: Os Sentidos de Verdade e Segurança Jurídica. Disponível em <http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=4883eb035654015a>. Acesso em: 8 ago. 2014
[18] PIRES, Maria Coeli Simões. Direito adquirido e ordem pública: segurança jurídica e transformação democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.
[19] ALENCAR, Rosman Antonni Rodrigues Cavalcanti de. Segurança jurídica e fundamentação judicial. Revista de Processo, vol. 149. p. 67 – 68.
[20] MARINONI, L. Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 105
[21] MEDINA, José Miguel Garcia, et alter. In Código do Processo Civil Anotado. OAB Paraná. Disponível em <www.oab.pr>. p. 897. Acesso em 12 abr. 2014.
[22] DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: M. Fontes, 1999. p. 3
[23] THEODORO JR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 55. Ed. Volume I. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 352.
[24] MARINONI, L. Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 121-156
[25] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. Coimbra. Almedina. 2002. p. 257.
[26] SARLET, Ingo Wolfang. A eficácia do Direito fundamental à segurança jurídica: dignidade de pessoa humana, direitos fundamentais e proibição de retrocesso social no direito constitucional brasileiro. Disponível em: < http://migre.me/mVcqw>. Acesso em 17.nov.2014.
[27] CORSALE, Massimo. Certezza Del diritto e crisi dei legittimità. Milano: Giuffrè, 1979. p. 34. In Marinoni. Op. Cit.
[28] MARINONI, L. Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 122.
[29] MARINONI op.cit., p. 125
[30] BRASIL. Constituição (1988) Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2010. Art. 5º caput. Disponível em: <www.planalto.gov.br > Acesso em: 10 mar. 2014.
[31] MARINONI, L. Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 139.
[32] TARUFFO, Michele. Idee per una teoría della decisione giusta. In Sui Confini – Scritti sulla giustizia civile. Bologna: Il Mulino, 2002, p. 221. Apud MARINONI. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 143.
[33] MARINONI op. cit., p. 146.
[34] RAMÍREZ, Federico Arcos. La Seguridad Jurídica – una teoría formal. Universidad Carlos III de Madrid. Madrid: Dykinson, S.L., 2000. p. 53. Tradução nossa.
[35] THEODORO JR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Volume I. 55. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 40.
[36] MARINONI, L. Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 165.
[37] PARANÁ. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Ação Ordinária. Vara Previdenciária de Curitiba. Ação de desaposentação. Autora: Railda Santos Alleluia. Réu: Instituto nacional de Previdência Social – INSS. AO 2008.70.00.008373-3/PR, DJPR 14 out. 2009. Disponível em <http://migre.me/mquE4>. Acesso em 22 out. 2014
[38] MARINONI, L. Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 167
[39] PASSOS, J.J. Calmon de. Súmula Vinculante. Revista do TRF da 1º Região. 1997. p. 171
[40] MAcCORMICK, Neil. Retórica e o Estado de Direito. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. p. 175.
[41] FREITAS FILHO, Roberto. Estudos Jurídicos Críticos (CLS) e coerência das decisões. Revista de informação legislativa: v. 44, n. 175. jul./set. 2007. Disponível em <http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/140237>. Acesso em 18 nov. 2014.